À volta dos sapatos
Depois de fazer o turno na fábrica, das oito às catorze horas, o Sr. Vítor vai todos os dias almoçar a casa, onde a mulher o espera, com os melhores manjares que consegue preparar.
À mesa está sempre tudo disposto de forma harmoniosa e apetecível, em travessas delicadas da Vista Alegre que a D. Luísa faz questão de usar, fora dos dias de festa.
Não é raro ouvir o Sr. Vítor admitir à vizinhança que a sua Luísa o agarrou, entre as mil e uma formas que a mulher engendra para enlouquecer um homem, pelo estômago, com toda a certeza. Curiosamente é magro como um rapaz de dezoito anos.
Segue, reconfortado, para o pequeno quiosque/sapataria onde se instalou, lá no bairro, há meia dúzia de anos.
A zona é pacata, mas não lhe falta o seu café, a mercearia, o cabeleireiro, o fotógrafo e a loja dos trezentos.
De porta aberta para a rua, rádio sempre ligado na Renascença, passa as tardes rodeado de botas, sapatos e sapatilhas, por arranjar e em arranjo.
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Botins Tabitha Simmons |
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Botins Tabitha Simmons |
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Sapatos Tabitha Simmons |
Põe poupa solas aos sapatos finos das senhoras, dá nova cara aos sapatos velhos dos homens, repara as botas estropiadas da miudagem.
Não há quem o não procure, quem não o conheça, nas redondezas.
Diz que não está alí para fazer dinheiro e os preços que pratica são mais do que amigos.
- Boa tarde D. Teresa.
Antes de entrar em casa, antes de passar no talho do Sr. Fernando, já pelo fim do dia, quando as pessoas regressam dos seus empregos, a D. Teresa entra no quiosque com um saco de cartão elegente, provavelmente de uma boutique chique.
- Boa tarde Sr. Vítor.
De camisa de seda com laçada, cabelo curto com arranjo de cabeleireiro, saia travada, a terminar um dedo apenas acima do joelho, casaca estilo Chanel, a D. Teresa não descura o visual.
De manhã, em frente ao espelho, é impreterível passar o lápis castanho pelos bonitos olhos verdes, que esconde com os óculos grossos, que as dioptrias não deixam esquecer, e rematar o penteado com um bom banho de laca.
- Como tem passado? Trago-lhe aqui estas alminhas, para ver se têm arranjo. Até estão deformados, de tantas molhas apanharem. Já os salvou no ano passado. Venho saber que diagnóstico lhes faz.
O Sr. Vítor sorri e ajeita os óculos, que lhe escorregam nariz abaixo, enquanto examina ao pormenor o que tem em mãos e se perde em pensamentos.
Aquilo sim é uma senhora. Não é que a sua Laura não seja uma mulher jeitosinha, mas a D. Teresa...que aprumo, que elegância.
Passa quase todos os dias, pelo quiosque, à mesma hora e está sempre impecavelmente apresentada.
Vítor, volta ao trabalho, que o resto é história.
- Acha que ainda valem a pena?
- Então não, com uma pele boa destas, ainda lhe ponho os sapatos finos para mais umas boas invernadas! - diz, com um sorriso rasgado na cara.
- Obrigada Sr. Vítor. É um artista! Que nunca as mãos lhe doam...
- Ora, ora D. Teresa, não me envergonhe. Não faço mais que a minha obrigação.
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Gucci |
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Gucci |
Gosto do Sr. Vítor, mas ainda gosto mais dos sapatinhos. lol
ResponderEliminarMuito bom! :))
Queres os verdes para o teu macho!!!!!
EliminarNão, acho q não será o seu estilo (lá está, é muito macho para isso! lolol), e ainda assim é Sportinguista - imagina se não fosse! lolol
ResponderEliminarPara mim, podia ser mesmo os botins, e até mm os sapatinhos à Cinderela....qq um deles seria a minha cara :) :)
Mas, e agora a sério, gostei muito da crónica. :)
"Quem tem imaginação, mas não tem cultura, possui asas, mas não tem pés" - Joseph Joubert
Estás lá, miúda! :)
Só tú miúda doida...
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