Mais feliz

A minha proximidade à bicharada nunca foi muito grande.
Quando ia passar fins-de-semana ao Alentejo, a casa do meu avô, borrava-me de medo de entrar no galinheiro. Só me imaginava a ser bicadinha até ao osso. Portanto, outro que se encarregasse de ir buscar os ovos, que eu, por motivos de força maior, não o poderia fazer.

Para mais, o meu paizinho ainda me traumatizou, graças ao seu gosto desmesurado pela passarada. Fazia criação e tive sempre na varanda, bem perto do meu quarto, piriquitos, melros, canários. Enfim, muita espécie voadora...
Posso dizer que os despertares em casa assemelhavam-se muito aos de uma casa na pradaria, com tanto chilrear. Mas nunca agarrei num pássaro...um medo muito grande das patas e dos bicos dos ditos cujos, quase ao género do filme "The birds" de Hitchcock.


Também nunca tive aquele fraquinho especial por cães, gatos ou por qualquer outro animal de estimação. Sempre achei fofinhos os cãezinhos que passeavam na rua, mas a uma distância considerável, com medo que me avançassem uma dentadinha nas canelas. 
E nunca atazanei a paciência dos meus pais a pedir-lhes um animal de estimação, até porque a minha rica mãezinha não estava para essas coisas.
Lembro-me perfeitamente de ter passado uma noite na casa de uma amiga que tinha três gatos e de dormir de porta fechada e com um olho aberto, não fosse algum deles aparecer sorrateiramente para me atacar. Via-os a pularem da estante para a mesa, da mesa para o sofá, donos e senhores da casa e achava aquilo estranhíssimo.
Mal eu sabia que as coisas mudariam passado um bom par de anos, quando ainda em casa do meu pai, recebemos um cão bebé rafeiro, de seu nome King. São inumeráveis as tropelias que ficam para contar. Fui buscá-lo muitas vezes ao campo atrás do prédio, porque fugia, à procura das cadelas (um verdadeiro galã). Tinha de o demover de tentava saltar pela janela do carro, em andamento. Mordeu-nos o sofá de couro, peça de museu lá de casa, com tal intensidade que o resultado final obrigou a que passasse a ter de ser tapado por uma manta. Roeu as cadeiras da cozinha na altura do crescimento dos dentes. O King era malhado, preto e branco, meigo mas um bocadinho rufia.O fiel companheiro de passeatas do meu pai.
Aos meus trinta e tal anos, andava eu numa fase terrível no emprego e a passar umas horas de almoço miseráveis, de cara a olhar para o chão, quando recebo o telefonema de uma amiga que morava ali perto a pedir-me encarecidamente que fosse dar de comer a dois gatinhos bebés que tinha encontrado, abandonados perto de um contentor do lixo.
Eu, pessoa bem-mandada, lá fui, em modo SOS gataria. As minhas horas de almoço passaram a envolver biberões e aquelas duas criaturinhas que deviam ter poucos dias, muito imberbes, frágeis e delicadas. Um gato malhado preto e branco e outro todo amarelinho. 
Mantê-los vivos era a minha única preocupação. Se aquele ritual os foi fortalecendo, a mim foi-me curando a alma, transformando-se num verdadeiramente processo terapêutico.
Um dia cheguei lá a casa e encontrei-os cheios de pulguinhas. Toca a correr para o veterinário com os dois no final do dia de trabalho.
Passaram essa noite numa caixinha de cartão, forrada com umas mantinhas, aos pés da minha cama. De duas em duas horas tinha de lhes fazer subir a temperatura corporal com o secador do cabelo, e a seguir embrulhá-los bem embrulhadinhos nas mantas. E lá se safaram!
A minha amiga propôs-me que ficasse com um deles, uma vez que não tinha horário de trabalho, nem capacidade financeira para dar guarida aos dois.
Hesitei um pouco. Mas como poderia eu recusar, se já estava completamente apaixonada por aquelas criaturinhas?
O amarelinho doido veio para minha casa, o meu Joaquim. O meu gato doidão, que não gostava de mais nenhum humano para além de mim. O meu Joaquim que adorava beber água das torneiras, que se enfiava dentro dos candeeiros e me fazia mil e uma travessuras.
As minhas calças de ganga passaram a ter fios puxados, porque quando ele era pequenino tentava subir-me pelas pernas acima. Os meus ricos sofás nunca mais foram a mesma coisa e têm de estar tapados, para não se verem desgraças.
Passei a conviver bem com o facto de existirem sempre alguns pêlos em casa ou na minha roupa. Aliás, a compra de peças pretas ficou quase posta de parte. Ando munida com um batalhão de rolos de fita aderente (em casa, no carro, no trabalho, no ginásio, em todo o lado) para remover alguns que insistem acompanhar-me. 
E tudo isso se contorna, quando se tem em casa melhores amigos de quatro patas. Tudo isso se contorna, por amor.
O meu Joaquim adoeceu, com um problema renal muito grave. Foram meses de muita lágrima os que antecederam a ida dele para o céu dos bichos. E lá onde estás, meu Joaquim, obrigada por tudo. Foste uma verdadeira bênção na minha vida. Obrigada por me ajudares a serenar, a respeitar outras formas de vida, a cuidar e proteger.
Que melhor homenagem te poderia fazer depois de partires do que povoar novamente a minha casa com um gatinho?
Mas um gatinho, havia de se sentir muito sozinho durante o dia, enquanto eu estivesse a trabalhar.
Fui visitar um abrigo onde a minha "amiga Mais amiga de animais" fazia voluntariado e vieram comigo para casa, não um, mas dois gatos loirões, já adultos.
E que experiência diferente. Pensava eu que tinha tido um gato maluco….
Tenho agora comigo, um gato comilão que se recusa a fazer as visitas de rotina ao veterinário e não gosta de agarranços e outro gato, meiguinho e muito low profile, de seus nomes, respetivamente, Félix e Afonso.
Quando subo as escadas para chegar a casa e os oiço miar, já sou uma pessoa MAIS FELIZ.





Comentários

  1. O meu afilhado, Joaquim! Guardo com carinho algumas fotos! Lembro-me perfeitamente do dia em que ele partiu! Foi doloroso!
    A decisão de adotar os amarelinhos, Félix e o Afonso foi excelente! Nunca se esquece um amigo felino, mas há tantos outros para amar...

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